segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O Amado

John Eagan, em seu livro: A travaler toward the dawn, está escrito:"O ponto principal do diário de John é que nós somos os maiores obstáculos para a nobreza de nossa alma — que é o significado da santidade. Nós nos julgamos servos indignos, e esse julgamento se torna uma autoprofecia. Supomos que Deus nem considera nos usar, mesmo um Deus capaz de realizar milagres usando apenas lama e saliva. Assim, nossa falsa humildade acorrenta um Deus que, por outro lado, é onipotente."

Eagan, um homem imperfeito, com fraquezas evidentes e defeitos de caráter, aprendeu que a transgressão é própria da condição humana, que devemos nos perdoar por não sermos amáveis, por sermos inconsistentes, incompetentes, irritáveis e gorduchos. Ele sabia que seus pecados não podiam afastá-lo de Deus. Todos eles foram redimidos pelo sangue de Cristo. Arrependido, levou o eu obscuro até a cruz e ousou viver como um homem perdoado. Na jornada de Eagan, ouvem-se ecos de Merton: "Deus está pedindo a mim, ao indigno, que esqueça a minha indignidade e a de meus irmãos, para ousar ir em frente no amor que redimiu e renovou a todos nós à semelhança de Deus. E então, ao final, rir das idéias despropositadas de 'merecimento'".

O eu comum é o eu incomum — o ninguém insignificante que treme no frio
do inverno e transpira no calor do verão, que acorda sem ter feito as pazes com o novo dia, que se senta diante de uma pilha de panquecas, que costura no trânsito, que faz barulho no porão, que faz compras no supermercado, que capina as folhas e as ajunta num monte, que faz amor e bolas de neve, que empina pipas e ouve o barulho da chuva bater no telhado.

Enquanto o impostor deriva sua identidade de conquistas passadas e da adulação dos outros, o eu verdadeiro sustenta sua identidade na amorosidade. Encontramos Deus nas coisas comuns da vida: não na busca da espiritualidade sublime ou do extraordinário, nem nas experiências místicas, mas simplesmente em estar presentes na vida.

Escrevendo para um intelectual e amigo íntimo, de Nova York, Henri Nouwen afirmou: "Tudo o que quero lhe dizer é 'Você é o amado' e tudo o que espero é que possa ouvir essas palavras como se ditas a você com toda a ternura e força que o amor pode compreender em si. Meu único desejo é fazer reverberar essas palavras em cada canto de seu ser: 'Você é o amado". Ancorado nessa realidade, o eu verdadeiro não precisa de trombetas com surdina para anunciar sua chegada nem de um palanque espalhafatoso para prender a atenção dos outros. Damos glória a Deus simplesmente por sermos nós mesmos.

Deus nos criou para estarmos unidos a ele: esse é o propósito original de nossa vida. Deus se define como amor (1Jo 4:16). Viver com a consciência de ser o amado é o eixo em torno do qual a vida cristã se desenrola. Ser o amado é nossa identidade, o centro de nossa existência. Não é apenas um pensamento arrogante, uma idéia inspiradora ou um nome entre tantos outros. É o nome pelo qual Deus nos conhece, e a forma pela qual se relaciona conosco.

Como Deus disse: "Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao vencedor, dar-lhe-ei do maná escondido, bem como lhe darei uma pedrinha branca, e sobre essa pedrinha escrito um nome novo, o qual ninguém conhece, exceto aquele que o recebe" (Ap2:17).

Se eu preciso buscar uma identidade que não esteja em mim mesmo, o acúmulo de riqueza, poder e honra me fascina. Ou, então, posso encontrar meu centro de gravidade nos relacionamentos sociais. Ironicamente, a própria igreja pode afagar o impostor conferindo ou retendo honrarias, oferecendo o orgulho de uma posição baseada no desempenho e criando a ilusão de status pelo escalão e pela ordem de importância. Quando pertencer a um grupo de elite eclipsa o amor de Deus, quando tiro vida e significado de qualquer outra fonte diferente da minha condição de amado, estou morto espiritualmente. Quando Deus é relegado a segundo plano, atrás de quaisquer bugigangas ou ninharias, troquei a pérola de grande preço por fragmentos de vidro pintado.

"Quem sou eu?", perguntou Merton, e respondeu: "Sou aquele que é amado por Cristo". Isso é a base do eu verdadeiro. A condição indispensável para desenvolver e manter a consciência de que somos os amados é reservar tempo a sós com Deus. Na solitude, estamos em harmonia, sem a recusa, declarada nos murmúrios, de nossa indignidade, e mergulhamos no mistério do eu verdadeiro. Nosso anseio por saber quem somos de verdade — conhecer a origem de nosso descontentamento — nunca será satisfeito até confrontarmos e aceitarmos nossa solitude. Lá, descobrimos que a verdade sobre sermos os amados é realmente legítima. Nossa identidade repousa na ternura implacável de Deus por nós, revelada em Jesus Cristo.

Os milagres bastam para qualquer um de nós? Ou o trovejar do "Deus amou o mundo de tal maneira" foi tão abafado pelo rugido da retórica religiosa que ficamos surdos para a promessa de que Deus tem sentimentos ternos por nós?

O vocabulário do impostor é ab ndante em palavras infladas, coloridas e presunçosas. Será mera coincidência que inexiste no evangelho a linguagem vazia, tímida? Os evangelhos não contêm traços de palavras refugadas, de jargões ou de nonsense significativo. Desatrelado e indomado, o impostor freqüentemente ressoa como um híbrido de William Faulkner com os irmãos Marx. Suas fervorosas declarações e suntuosidade são uma profusão de meias verdades. Por ser o mestre dos disfarces, pode facilmente escorregar para a humildade fingida, o ouvinte atencioso, o espirituoso contador de histórias, o intelectual arrojado ou o cidadão do mundo. O falso eu controla-se, talentosamente, para não se abrir, evitando, escrupulosamente, qualquer revelação pessoal significativa.

O silêncio não é apenas ausência de barulho nem interrupção da comunicação com o mundo exterior, mas um processo de chegar à tranquilidade. A solitude silenciosa faz avançar gradual e constantemente o discurso verdadeiro. Não estou falado de isolamento físico; aqui, solitude significa estar a sós com o Único, conhecendo o Outro transcendente, e desenvolver a consciência de sua identidade como sendo o amado. É impossível conhecer uma pessoa intimamente sem gastar tempo juntos. O silêncio faz da solitude uma realidade. Já se disse: "Silêncio é a solitude em ação".

"Você nãose vê como realmente é por causa de toda a confusão e perturbação. Deixa de reconhecer a presença divina em sua vida, e a consciência de ser o amado lentamente desaparece." Leva tempo para a água se acalmar. Atingir a tranqüilidade interior exige espera. Qualquer tentativa de apressar o processo apenas agita, novamente, a água. Sentimentos de culpa podem surgir de imediato. O eu obscurecido insinua que você é egoísta, que está desperdiçando tempo e que está fugindo das responsabilidades com a família, a carreira, o ministério e a comunidade. Você mal pode se dar ao luxo de ficar à toa.

A experiência me ensinou que minha conexão com outros é melhor quando estou conectado ao que é essencial em mim. Quando permito que Deus me liberte da doentia dependência de pessoas, ouço mais atenciosamente, amo de forma mais desinteressada, e sou mais compassivo e brincalhão. Não me levo tão a sério, me conscientizar-se de que o sopro do Pai está sobre meu rosto e que meu semblante se ilumina com risos, em meio a uma aventura que desfruto integralmente.

"Gastar" tempo com Deus de forma consciente me capacita a falar e agir com mais força, perdoar em vez de alimentar a última ofensa ao meu ego ferido e agir com magnanimidade durante os momentos triviais da vida. Enche-me de força para que eu possa me perder de mim mesmo, pelo menos temporariamente, num contexto maior do que o pequeno quadro  representativo de meus medos e inseguranças; aquietar-me,  simplesmente, e saber que Deus é Deus.

Estar a sós com o Único nos leva a deixar o que John Henry Newman chamou de conhecimento racional ou nocional para abraçar o conhecimento real. O primeiro significa que conheço algo de forma distante e abstrata, que nunca invade minha consciência; o segundo significa que, embora possa não conhecêlo, ainda assim, ajo com base nisso.

Não temas, porque eu te remi; chamei-te pelo teu nome, tu és meu. (...) Visto que foste precioso aos meus olhos, digno de honra, e eu te amei, (...) os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será removida. (Isaías 43:1,4; 54:10)

A cada momento de nossa existência, Deus nos oferece essa boa nova. Infelizmente, muitos de nós continuamos a cultivar de tal modo a identidade artificial que a verdade libertadora de sermos os amados não consegue transpô-la. Dessa forma, nos tornamos carrancudos, temerosos e legalistas. Escondemos nossa trivialidade e chafurdamos na culpa. Sopramos e bufamos para impressionar Deus; brigamos para "ficar bem na foto"; debatemo-nos tentando nos consertar e vivemos o evangelho de uma forma tão sem graça que desmotivamos os denominados "cristãos" e os incrédulos a buscarem a verdade.

Frederick Buechner escreveu: "Arrependam-se e creiam no evangelho, diz Jesus. Mudem de atitude e creiam que a boa nova de que somos os amados é melhor do que aquilo que jamais ousamos imaginar. Crer nessa boa nova, viver a partir dela e para ela, apaixonar-se por ela é a mais alegre das alegrias deste mundo. Amém. Volte, Senhor Jesus."


(Retirado do livro "O impostor que vive em mim" de Brennan Manning - 3° Capítulo)

Para ler o resumo do 2° Capítulo, clique AQUI


A Graça e a Paz do Senhor Jesus.

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